Hashioki – história do descanso para pauzinhos
Os pauzinhos, ou “hashi”, são indispensáveis no dia a dia japonês. Há pauzinhos mais compridos e fortes para cozinhar, entre muitos outros.
Os pauzinhos, ou “hashi”, são indispensáveis no dia a dia japonês. Há pauzinhos mais compridos e fortes para cozinhar, e pauzinhos mais bonitos e coloridos para comer à mesa. Nos restaurantes de renome há por vezes até pauzinhos encomendados a especialistas, autênticas obras de arte. Nas bancas de comida rápida e cantinas há pauzinhos de bambu simples que se “partem” no topo para separar (fazendo notar que são de uso único). Mas, sem “hashioki”, como se poderia usar o “hashi”? É que os pauzinhos nunca se poisam directamente na mesa! Devem estar apoiados numa pequena peça, de modo que a ponta – que toca os alimentos – se mantenha higienizada. É deste humilde “descanso” que vamos falar, pois apesar de ser pequeno tem grande história e pode dar um significado profundo à refeição.
Por volta do século 5º a.C. os pauzinhos começaram a ser usados pela corte e nobreza no Japão, inicialmente como uma prática cultural importada da China. O Império do Meio deu origem a muitas das práticas culturais nipónicas, sendo a principal referência para o que era a “Civilização”. Com o passar do tempo, outras camadas da população adoptaram também essas práticas. As escavações arqueológicas realizadas perto de Nara, na zona da primeira capital imperial, revelaram que tanto os “hashi” como os “hashioki” eram já de uso comum, e que eram fabricados com muito cuidado e detalhe, através das mesmas técnicas de impermeabilização com laca que também eram aplicadas a taças e copos. Portanto, sabemos de fonte segura que no século 7º d.C se usava laca – o que exige um investimento substancial de dinheiro, tempo e perícia – para criar peças que se destinavam a ser usadas múltiplas vezes, em contexto de alimentação, e que deveria ser já uma produção muito expressiva.
A ideia de que os “hashi” devem ter as suas pontas apoiadas em algo deriva naturalmente de uma observação empírica a respeito da correlação entre a higiene alimentar, a saúde e a doença. Mas não podemos excluir também o aspecto simbólico e os valores de pureza e impureza que estão profundamente enraizados no shintoísmo. Os rituais shinto, praticados em honra dos “kami”, exigiam já de longa data que os pauzinhos nunca se conspurcassem. Portanto, se eram usados para manusear as oferendas para os espíritos divinos, não poderiam tocar objectos impuros. Os materiais dos primeiros “hashioki” seriam madeira de certas árvores (como por exemplo a cerejeira), cerâmica com cobertura de laca, ou marfim.
Quando se estabeleceu no Japão o sistema dos domínios feudais, no Período dos Reinos Combatentes, e com a crescente complexificação da pirâmide social, passou a ser produzida loiça, roupa e muitas outras utilidades domésticas com o “mon” (brasão) de cada um dos “daimyou” (senhor feudal). Este alto representante do poder, praticamente um rei nos seus domínios, só poderia usar objectos especificamente criados para si, tal era a sua superioridade. Os objectos com o “mon”, com decoração alusiva aos valores específicos de cada “daimyou” ou com temas próprios de cada território, passaram a ser a norma, pelo que os “hashioki” se tornaram a base perfeita para uma mini-representação desse género. No período seguinte, conhecido como Edo, e que corresponde ao longo domínio do Shogunato Tokugawa, os “hashioki” tornaram-se absolutamente centrais na etiqueta das refeições e no diálogo subtil de valores estéticos e sociais. Um descanso de pauzinhos poderia sugerir um sentimento, uma memória ou uma ideia através da sua figuração, cor ou forma. Em conjunto com a apreciação dos arranjos florais (ikebana), da caligrafia pendurada na parede e da própria comida, todo um diálogo silencioso é formado, passando mensagens entre o anfitrião e os convivas, ou entre o chefe de família e os convidados. A necessidade de ter disponível o “hashioki” ideal para cada situação e o facto de serem tão pequenos que se tornavam fáceis de arrumar e manter, levou a que fossem comprados vários exemplares por lar, e mesmo por vezes à criação de pequenas colecções. Consequentemente, no período Edo, os estilos diversificaram-se e evoluíram muito significativamente, incluindo com a introdução de novos materiais.
Contudo, foi depois da transição para o século XX que realmente se deu um acentuado acréscimo na produção de “hashioki”, coincidindo com a inauguração das primeiras “depaato” (“Department Store”). Estas grandes superfícies, templos de consumismo, eram novidade absoluta no Japão, mas geraram um frenesim e foram rapidamente integradas na perspectiva de modernidade e progresso que o povo japonês ansiava alcançar rapidamente. O acto de comprar, e especialmente de possuir algo que se pode mostrar a outrem (um convidado que visita a casa, um familiar, etc), agora facilitado pelo preço acessível dos produtos produzidos de modo massificado, veio a conjugar-se com a sede por símbolos do bom-gosto e do requinte, historicamente ligados às práticas das classes governantes.
Cada um dos pequenos apoios para pauzinhos que usamos hoje carrega esta longa história e é um símbolo dos valores cultuais do Japão, mesmo quando os materiais são apenas a cerâmica ou o vidro, e mesmo numa época em que personagens de animação ou animaizinhos queridos são mais populares do que as ancestrais representações da sazonalidade. Acima de tudo, para quem usa os “hashioki” hoje, é uma questão de acrescentar beleza e sentido prático, um “dois em um”, simultaneamente conveniente e que enriquece a alma com a experiência estética.
Inês Carvalho Matos